domingo, 18 de outubro de 2009

CAPÍTULO 4 - O ZERO NO ORIENTE


Na última vez que vimos o zero no Oriente, era apenas um “marca-lugar”. Um espaço em branco no sistema de numeração babilônico. Sua utilidade era inegável, embora ainda sem um valor numérico por si próprio. O zero só ganhava significado quando havia dígitos à sua esquerda. Em outras palavras, o símbolo do zero não significava nada por si próprio. Porém, foi na Índia que tudo mudou.


No século IV a.C., Alexandre magno, marchou com suas tropas da babilônia até a Índia, provavelmente levando o zero consigo. Através desta invasão, matemáticos indianos tiveram contato pela primeira vez com o sistema numérico babilônico e, conseqüentemente, com o zero.


Após a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C., os seus desordeiros generais dividiram o império em pedaços. Como resultado, a Índia ficou isolada da ascensão do cristianismo e da queda de Roma. Além disso, também ficou isolada da filosofia aristotélica. Na verdade, Alexandre foi ensinado por Aristóteles e também, certamente, introduziu as idéias aristotélicas na Índia. Contudo, estas não vingaram, e por uma razão particular que diferenciava a Índia da Grécia: a aceitação do vazio e do infinito.


O vazio tinha um valor importante na religião hindu. Como muitas religiões orientais, o Hinduísmo estava inserido em simbologias de dualidades. Tal como o Yin Yang do Extremo Oriente, a criação e a destruição estavam misturadas no Hinduísmo. O Deus Xiva, que era tanto criador quanto destruidor do mundo, era representado com o tambor da criação numa mão e a chama da destruição na outra. No entanto, Xiva também representava o nada. Um aspecto da divindade Nishkala Shiva era literalmente Xiva “sem partes”. Era o supremo nada a falta de vida encarnada. Mas a partir do vazio nasceu o universo, assim como o infinito. O cosmos hindu era infinito em expansão; havia inumeráveis outros universos. A própria doutrina hinduísta pregava o início da vida a partir do nada e o fim de tudo voltando para o nada.


Portanto, a Índia, como uma sociedade que explorava ativamente o vazio e o infinito, aceitou o zero.


Um texto indiano datado do mesmo ano da queda de Roma – 476 a.C. – mostra a influência da matemática grega, egípcia e babilônica na Índia, trazida por Alexandre. Como os egípcios, os indianos tinham “esticadores de corda” para planear templos e inspecionar terrenos. Tal como os gregos, possuíam um complicado sistema de astronomia. Tentaram até calcular a distância ao Sol, o que requeria trigonometria, cuja versão indiana provavelmente derivou do sistema que os gregos haviam desenvolvido.


Por volta do século V d.C., os matemáticos indianos alteraram o seu estilo de numeração mudando de um sistema estilo grego, para outro do estilo babilônico. Porém, os indianos não copiaram o sistema babilônico, pois havia uma grande diferença entre ambos: o sistema indiano era de base 10 enquanto que o babilônico era de base 60. Nosso números desenvolveram-se a partir dos símbolos usados pelos indianos. Não se sabe ao certo o momento exato que os indianos fizeram a troca para um sistema posicional do estilo babilônico. De qualquer forma, já pelo século IX, estava, certamente, em uso um símbolo para o zero – o “marca-lugar” do sistema decimal.


Os indianos nunca se apropriaram da geometria grega. Nunca se preocuparam em saber se a diagonal do quadrado é racional ou irracional e nem investigaram as secções cônicas, como o tinha feito Arquimedes. Mas aprenderam a brincar com os números.


O sistema indiano de numeração permitia-lhes usar estratégias para adicionar, subtrair, multiplicar e dividir números sem o uso do ábaco. Graças ao sistema posicional, conseguiram somar e subtrair números grandes similarmente ao jeito que realizamos atualmente. Com treino, era possível multiplicar números mais velozmente que um abacista conseguia calcular. Até concursos entre algoristas e abacistas se tornaram um grande desafio, onde, no final, os algoristas sempre ganhavam.


Contudo, o grande salto do sistema indiano não foi a bela capacidade e utilidade de fazer adições e multiplicações. A grande diferença estava na distinção entre números e geometria. O contrário do gregos, os indianos não viam quadrados em números quadrados e nem áreas de retângulos ao se multiplicar dois números. Em vez disso, viam o jogo recíproco dos algarismos que não mais traziam consigo um significado geométrico. Isto foi o nascimento daquilo que hoje chamamos de álgebra.


Esta atitude acabou impedindo que os indianos dessem uma contribuição importante para a geometria, mas isso permitiu-lhes libertar-se das deficiências do pensamento grego e da sua rejeição do zero.


Uma vez que o significado geométrico foi afastado dos algarismos, os matemáticos só tinham que se preocupar com as operações matemáticas fazerem sentido também para a geometria. Afinal, para os antigos gregos, 2 – 3 = -1 não fazia o menor sentido, já que não tem cabimento tirar 3 hectares de um terreno de apenas 2 hectares.


Já para os indianos, os números negativos tinham sentido. De fato, foi na Índia (e na China) que os números negativos apareceram primeiro.; Bramagupta, matemático indiano do século VII, ditou regras para dividir números uns pelos outros, incluindo os negativos. “Positivo a dividir por positivo e negativo por negativo, é afirmativo.”; ”Positivo a dividir por negativo é negativo.”. Regras que conhecemos hoje.


Tal como 2 – 3 = -1 era um número que fazia sentido, 2 – 2 = 0 também fazia sentido. Não só mais como um “marca-lugar” ou uma representação de um espaço vazio no ábaco mas fazia sentido como número; o número zero. Número que tinha seu valor específico e lugar fixo na linha numérica. Uma vez que o zero era igual a (2 – 2), então tinha de vir anteriormente a (2 – 1) e posteriormente a (2 – 3). o zero não poderia mais vir depois do 9, tal como vemos nos teclados de computador. O zero tinha sua posição na linha numérica e, sem ele, esta linha não poderia existir, tal como um sistema sem o 2, por exemplo. O zero finalmente chegara.


No entanto, os indianos achavam que o zero era um número muito bizarro. Afinal, zero multiplicado por qualquer número é zero e qualquer número dividido por zero joga tudo pelos ares. Bramagupta tentou calcular quanto era 0÷0 e 1 ÷ 0, e escreveu que 0 ÷ 0 = 0 e que 1 ÷ 0 era, bem...., algo que não se sabe ao certo porque não faz o menor sentido.


O erro de Bramagupta não perdurou por muito tempo. Os indianos logo perceberam que 1 ÷ 0 era infinito. O matemático indiano no século XII, Bháskara escreveu: “esta fração cujo denominador é zero, é designada por uma quantidade infinita.”; “Ao adicionarmos um número a 1 ÷ 0 , não há qualquer alteração, embora possam ser extraídas ou inseridas muitas, tal como nenhuma alteração tem lugar no Deus infinito e imutável.”


Deus, portanto, foi encontrado no infinito, e no zero.


O zero era o emblema dos novos ensinamentos, da rejeição de Aristóteles e da aceitação do vazio e do infinito. Por todo o mundo, sob o domínio muçulmano, o zero difundia-se à medida que o Islão se expandia, conflitando por todo o lado com a doutrina aristotélica.


Os antigos judeus medievais, tanto na Espanha quanto na Babilônia estavam firmemente ligados à doutrina aristotélica, tal como seis companheiros cristãos. Todavia, da mesma forma que a filosofia aristotélica entrava em conflito com seus ensinamentos islâmicos, também entrava em conflito com a teologia judaica. Isto levou Maimónides, rabi do século XII, a escrever um tomo para reconciliar a Bíblia oriental e semita com a filosofia ocidental grega que permeava a Europa.


Maimónides aprendera com Aristóteles a demonstrar a existência de Deus negando o infinito, reproduzindo fielmente os argumento gregos. Essa demonstração da existência de Deus era algo de grande valor em qualquer teologia. Ao mesmo tempo, a Bíblia e outras tradições semitas estavam repletas de idéias do infinito e do vazio – idéias que os muçulmanos já entendiam. Tal como Santo Agostinho, 800 anos antes, Maimónides tentou reformular a Bíblia semita para se ajustar à doutrina grega: a doutrina que se apavorava com a idéia do vazio. Todavia, Maimónides, ao contrário dos outros cristãos, não estava disposto a helenizar completamente sua religião. A tradição do Rabi forçou-o a aceitar os relatos bíblicos acerca da criação do mundo a partir do vazio, o que, por sua vez, significava contradizer Aristóteles.


Maimónides argumentou que havia falhas na demonstração aristotélica de que o universo sempre existiu, pois entrava em conflito com as Escrituras. Isto significava recusar Aristóteles. Maimónides afirmou que o ato da criação veio do nada. Com isso, o vazio passou de sacrilégio a sagrado.


Em 1277, o bispo de Paris, Étienne Tempier, convocou uma assembléia de eruditos para discutir aristotelismo, ou melhor, para o atacar. A onipotência de Deus era o maior ponto, não a ser discutido, mas a ser relacionado com as idéias de Aristóteles. Tempier aboliu muitas das doutrinas que contradiziam a onipotência divina, tal como: “Deus não pode mover os céus em linha reta, pois deixaria para trás um vácuo”. (As esferas rotativas ao girarem, estariam ocupando o mesmo espaço. Para mover as esferas em linha reta, era necessário um espaço vazio para onde as esferas se dirigiriam e outro espaço vazio deixado por elas após se movimentarem). Deus, se quisesse, poderia mover os céus em linha reta, pois a divindade onipotente não era obrigada a seguir as regras aristotélicas.


Esse era o momento mais propício para o zero chegar ao ocidente. Em meados do século XII, algumas adaptações de publicações matemáticas árabes já caminhavam pela Espanha, Inglaterra e o resto da Europa. O zero estava a caminho e chegou exatamente no momento em que a Igreja quebrava algumas algemas do aristotelismo.